Meu peito é uma Ilha - Júlio Martins
Clara Salles: meu peito é uma ilha
O caminho lento aumenta sua coragem secreta. E de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda.
O sal, o iodo, tudo líquido, deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo - espantada de pé, fertilizada.
Clarice Lispector, As águas do mundo
Os trabalhos de Clara Salles reunidos nesta exposição nasceram de suas vivências por uma região de pescadores no litoral do Espírito Santo, pelos arredores de Dunas de Itaúnas. Mas ainda que a paisagem do lugar tenha encontrado a artista disponível aos seus devires, voluntariamente sensível às materialidades locais e atenta a seus ritmos, o que a moveu no diagrama desse encontro foi a possibilidade de fabulação poética, de visitar ativamente suas paisagens interiores e reconhecer os afetos estabelecidos in loco, para além da representação. Portanto o sal, a areia, as tramas das redes de pesca, as mechas de cabelo e manchas de tinta com que perfaz índices de memórias apresentam-se como talismãs e recordações, símbolos e presenças, já que ao mesmo tempo evocam e representam, registram como também ficcionalizam, reinventam os contatos igualmente instáveis entre o que sejam os desdobramentos das experiências vividas e aquilo que se firma pela linguagem como realidade elaborada pela artista. E também os cavalos, as cores, as geografias, as texturas e as sombras das roupas secando no varal figuram aparições que guardam aspectos de lembranças enquanto são feitos da mesma matéria fluida dos sonhos.
Adentrar sozinha no mar exigiu coragem da personagem de Clarice Lispector no conto "As águas do mundo". Uma desmesura enorme de escalas entre ela e o mar é atravessada, entretanto, por uma experiência sensível, instigada no corpo. A mulher mergulha e sente-se fertilizada pelo mar, bebe sua água salgada, traz o mar para dentro de si, deseja apropriar-se das águas do mundo, incorporar e interiorizar o mar incontornável para fazer das águas do mundo as suas águas. Assim, a personagem experimenta mistérios da existência ininteligível do mar no mesmo gesto em que também toca sua própria existência ininteligível e vislumbra seus próprios mistérios. Tal enlace "não precisa de comunicação", já que a experiência intensificada desarticula as tentativas da linguagem em recompô-la. Cumprir a tarefa corajosa de lançar-se ao mar corresponde a uma entrega, manifesta um mergulho interior por parte da mulher, na intensidade com que também Clara Salles desejou relacionar-se com as paisagens experimentadas, partilhadas em suas obras. É que em resposta a certo esvaziamento posterior à experiência, a artista recorre especialmente às materialidades e seus significados intrínsecos para construir imagens que não exatamente quebram esse silêncio nem buscam sua tradução mas o investem de extratos de sensações intensas e de pensamentos inapreensíveis vinculados ao calor das experiências. Clara Salles investiga suas vivências na mesma medida em que se esforça para elaborá-las sob múltiplos registros e linguagens, sejam desenhos, gravuras, objetos, fotografias, escritas ou pinturas, numa postura necessariamente experimental em seu sentido mais urgente. Os trabalhos são perpassados pelos trajetos, afetos em trânsito e intercâmbios intensos vivenciados e constituem um inventário de experiências e movimentos que convergem para um lugar inventado.
"Mergulho" é muito significativo da poética da artista. Depois de negociar com pescadores locais ela conseguiu obter uma rede de pesca usada para elaborar seu trabalho. Reconhecendo a energia masculina da força, da violência da captura, bem como sua relação de contato invasivo com o mar, Clara Salles escolheu operar enfocando a leveza e a transparência que se disponibilizavam igualmente no objeto. A artista suspendeu a rede, invertendo seu eixo para a vertical, de modo que sua malha fosse atravessada pelo nosso olhar. A porção final da rede, que se conecta ao chão, foi tecida utilizando pêlos de crinas de cavalos, mesclando as origens e os destinos desse emaranhado simbólico.
Nas monotipias, dependuradas como estandartes ao longo da arquitetura do museu, a artista compõe imagens em que preserva o dado fragmentado de sensações e cenários dos encontros que manteve com a paisagem, sob o signo de um mundo arcaico e íntimo, doce e perigoso. Diante da resistência do afeto em tornar-se legível, o frescor da técnica da monotipia proporciona a descoberta de uma imagem espontânea, mais imediata e menos controlada. Surge então uma fabulosa mitologia pessoal de cavalos, peixes, árvores, pássaros e outros seres que habitam a geografia interior da artista. Impressas sobre tecido, as paisagens pendem elegantes do teto, tremulam suavemente como pertencentes a uma ordem etérea de coisas. E é com semelhante delicadeza que a artista ergue bandeiras utilizando varas de pescar e calcinhas femininas. Ela borda com as próprias mãos nas calcinhas transcrições de juras de amor e textos que testemunham encontros amorosos explosivos, escritos encontrados pelos muros das casas, de uma intimidade que desliza para o espaço público. Assim, tais inscrições tornam-se marcas impressas diretamente no corpo e não pretendem conquistar um território, apenas e simplesmente tatear os contornos oscilantes e vestígios poéticos das experiências vivenciadas.
Já em suas pinturas, Clara Salles empreende um mapeamento das sensações e dos lugares por meio de formas que transitam entre ricas plasticidades e a configuração de paisagens oníricas. As tramas e empastes prolongam o órgão da pele da artista pelas superfícies, zonas de cor e texturas da pintura. Convívio, pertencimento, espelhamento e fertilização mútua são vetores de sentido das relações que a artista estabelece com paisagens da memória e da fantasia. Marcas de afeto que se originam do encontro do corpo com a paisagem são trabalhadas nas pinturas mantendo sua condição fragmentada, lacunar e particular, mesmo estruturando cenas ou geografias, pois há um interesse focado em cada pincelada espessa, em cada campo cromático, em cada gestualidade e a cada toque em produzir um efeito de revelação sensível dos elementos do lugar. A pesquisa pictórica de Clara Salles, portanto, é semelhante ao mergulho da personagem de Clarice Lispector por sondar a própria interioridade.
Júlio Martins, curador
Entrevista Revista Wanda
https://revistawanda.substack.com/i/156901034/envolvimentos-com-clara-salles